Conhecimento e Educação

Geração "nem-nem" cresce longe de emprego e escola
Aumenta a parcela de jovens brasileiros que vive sem estudar ou trabalhar

Combinação de fatores exclui essas pessoas dos benefícios do menor desemprego e da maior inclusão educacional 

ÉRICA FRAGA
DE SÃO PAULO 

Nem estudando, nem trabalhando. Mais de dois em cada dez jovens brasileiros entre 18 e 20 anos se encontravam nessa espécie de limbo em 2009, à margem da crescente inclusão educacional e laboral registrada no país em anos recentes.
Essa geração "nem-nem" (tradução livre do termo ni-ni, "ni estudian ni trabajan", usado em espanhol) representa uma parcela crescente dos jovens de 18 a 20 anos.
Eram 22,5% dessa faixa etária em 2001 e 24,1% em 2009 (o equivalente a 2,4 milhões de pessoas). Nesse mesmo período, a taxa de desemprego no país recuou de 9,3% para 8,4%.
Os dados são da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) e foram levantados pelo pesquisador Naercio Menezes Filho, do Centro de Políticas Públicas do Insper.
Segundo especialistas, essa tendência é resultado de várias causas. Entre elas, paradoxalmente, o maior aquecimento no mercado de trabalho -que tem acirrado a competição- e o aumento significativo de transferências do governo para famílias de renda mais baixa.
"Há mais vagas sendo criadas, mas a concorrência também é maior e e esses jovens têm pouca ou nenhuma experiência", diz Menezes.
A hipótese é confirmada pelos próprios jovens que fazem parte dos "nem-nem".
"Quem emprega quer experiência. Não tem muita oportunidade para jovens da minha idade", reclama Cibele Morelis, 20 anos, ensino médio completo e desempregada há três meses.
À falta de experiência se soma outro problema: a formação educacional precária.
"Temos hoje um cenário de jovens com escolaridade crescente mas de péssima qualidade. Nos últimos 15 anos, a política educacional privilegiou o ensino universitário, em detrimento do fundamental e do médio", diz Cláudio Dedecca, professor de economia da Unicamp.

SEM PORTUGUÊS
Quem recruta jovens faz eco a esse diagnóstico.
"O resultado de anos e anos de aprovação automática é que jovens com diploma de ensino médio chegam aqui sem falar bem o português. São especialistas em Orkut, mas não têm ideia de como usar o Office", diz Bruna Barreto, do Isbet (Instituto Brasileiro Pró Educação, Trabalho e Desenvolvimento).
Em situação ainda pior está quem nem terminou o ensino médio. É o caso de Janaína Farias, 18 anos. "Perdi a vaga na escola por excesso de faltas. Estava trabalhando como auxiliar de cozinha."
Mas, segundo especialistas, há jovens em situação oposta à dela. São os que decidem adiar os planos de trabalhar porque a renda da família engordou com transferências do governo.
"Jovens de famílias nas quais algum membro recebe transferências do governo acabam incentivados a não buscar trabalho", afirma José Márcio Camargo, da PUC-RJ e da Opus Gestão de Recursos.



 Artigo Folha de São Paulo em 09/09/2010


CONTARDO CALLIGARIS 

Leia com atenção - ou não


Novas pesquisas valorizam a divagação e o devaneio, ambos hoje considerados indispensáveis para pensar


A SEXTA temporada de "House" está acabando, no Universal Channel, e a sétima é iminente. Quem segue a série sabe que, frequentemente, o achado decisivo do médico House acontece, digamos, por distração.
Durante uma boa metade de cada episódio, House testa todo tipo de hipótese diagnóstica, enquanto o paciente sobrevive a exames e tratamentos inúteis.
Mesmo durante essa primeira fase, House não avança graças a sei lá qual capacidade focada de examinar e interpretar os sintomas do paciente. Ao contrário, ele funciona direito só numa espécie de jogo em que os membros de sua equipe, meio que no chute, levantam hipóteses que ele derruba.
Essa componente lúdica e divagadora de seu funcionamento aparece em outras circunstâncias: o paciente está morrendo e House (para pensar melhor ou para não pensar?) toca guitarra elétrica, ironiza a vida sentimental de um amigo, brinca com uma bola.
Reconhecemos facilmente a hora do diagnóstico final e correto porque 1) faltam 15 minutos ao fim do episódio, 2) repetidamente, esse diagnóstico surge quando House se perde num pensamento que não tem nada a ver com o paciente e sua doença.
Imagine, por exemplo, que o paciente esteja morrendo ou prestes a ser operado por causa de um diagnóstico errado. House entra num bar para assistir a um jogo de futebol. Vergonha: ele deveria estar preocupado com seu paciente, não é? Mas eis que um zagueiro faz um gol contra, e a distração desse momento-futebol permite que House se lembre de que, às vezes, o organismo também faz gol contra: heureca, doença autoimune!
Para os psicanalistas, essa situação é familiar. Freud recomendava que os pacientes fossem escutados com "atenção flutuante". Ele não sugeria que, durante a sessão, os analistas lessem o jornal ou cuidassem de seus e-mails.
Mas acontece que interpretar significa juntar dois pensamentos que, à primeira vista, não parecem ter muito a ver um com o outro. Para que isso aconteça, é preciso manter aberta a porta da divagação, de modo que pensamentos estrangeiros ao contexto não sejam barrados por princípio.
O diagnóstico médico e a escuta psicanalítica são processos que exigem um exercício criativo, se não inventivo. Neles, pode ser bem-vindo, AO MESMO TEMPO, divagar (ou mesmo devanear) e seguir os caminhos focados do pensamento que executa uma tarefa.
Nos anos 60, o metilfenidato (um estimulante) começou a ser usado para tratar o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) em crianças em idade escolar. De 60 a 90, o diagnóstico de TDAH aumentou brutalmente: nos EUA, por exemplo, de 12 crianças em cada mil nos anos 70, chegou-se a 34 em cada mil nos anos 90.
Seja qual for a realidade neurológica e psicológica do TDAH e seja qual for a eficácia do seu tratamento com metilfenidato, é difícil não constatar que a epidemia tem também uma explicação cultural.
Sua história começa logo nos anos 60, uma época em que divagar (perder-se no pensamento e pelo mundo) era um valor positivo da contracultura. Desde então, voltamos a prezar o olhar focado do predador. O ápice dessa reação (e do diagnóstico de TDAH) foi a religião do sucesso dos anos 90.
Ora, começam a aparecer pesquisas que revalorizam a divagação e o devaneio. "Descobrimos" o que já sabíamos: há uma desatenção sem a qual não se consegue pensar nada que valha a pena.
Usando apenas o dito "controle executivo" focado, conseguiremos cumprir tarefas adequadamente (mesmo assim, à condição que não haja imprevistos), mas não inventaremos nada. A própria invenção científica (não só a criação artística) pede um uso simultâneo de controle executivo e divagação.
Duas pesquisas, para quem quiser ler (com atenção, claro):www.migre.me/1aZZu e www.migre.me/1b57h.
A segunda documenta (por ressonância magnética funcional) a cooperação possível de pensamento focado e devaneio (que ainda são, por muitos, considerados como atividades exclusivas uma da outra).
À luz dessas pesquisas, seria bom reavaliar nossa hipervalorização da atenção focada e, sobretudo, nossa medicalização sistemática de crianças que, às vezes, com toda razão, gostam de sonhar de olhos abertos.

ccalligari@uol.com.br